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O direito à convivência social e a luta antimanicomial

“Que outra coisa é se não violência a força que incita uma sociedade a afastar e excluir os elementos que não fazem parte de seu jogo?”

(BASAGLIA, 1985, p. 127)

O direito à convivência social é uma conquista dos movimentos sociais que foi reconhecida pelo Estado brasileiro no processo de democratização. Leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.699/90), a Lei Orgânica de Assistência Social (Lei 8742/93, atualizada pela Lei 12.435/11), o Estatuto do Idoso (Lei 10.471/2003), a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei n.º 10.216, 2001) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), expressam esse reconhecimento da convivência social como direito. Com isso, o Estado passa a ser responsável por executar serviços e programas voltados à construção de modos de convívio que respeirem a diversidade, favoreçam convívios mais democráticos e que valorizam a autonomia dos cidadãos.

Afirmar a convivência social como direito do cidadão e responsabilidade do Estado é fazer um contraponto às políticas e práticas de segregação e confinamento que, tradicionalmente, se expressam na institucionalização de pessoas em unidades fechadas, apartadas do convivío fora dos muros da instituição, impedindo sua livre circulação. A violação do direito à convivência também se expressa em práticas sociais que procuram padronizar e “normalizar” comportamentos e atitudes, que desconsideram as trajetórias e saberes de cidadãos, visto que o desrespeito da vontade e do exercício de autonomia, bem como a desvalorização de suas capacidades são formas de violação do direito ao convívio social.

Ao mesmo tempo que celebramos as conquistas na legislação, reconhecemos o desafio de materializar o direito à convivência social na vida dos cidadãos, superando as ações segregadoras e construindo práticas que ampliem a sociabilidade e o reconhecimento social, tal como expresso na Política de Assistência Social (PNAS, 2004) ao tratar do convívio social como segurança social:

A segurança da vivência familiar ou a segurança do convívio (…) supõe a não aceitação de situações de reclusão, de situações de perda das relações. (…) A dimensão societária da vida desenvolve potencialidades, subjetividades coletivas, construções culturais, políticas e, sobretudo, os processos civilizatórios.

As barreiras relacionais criadas por questões individuais, grupais, sociais por discriminação ou múltiplas inaceitações ou intolerâncias estão no campo do convívio humano. A dimensão multicultural, intergeracional, interterritoriais, intersubjetivas, entre outras, devem ser ressaltadas na perspectiva do direito ao convívio. (PNAS, 2004, p.26).

Institucionalização x convívio social

A institucionalização de pessoas e a retirada do convívio social é prática antiga e mais intensamente adotada no Brasil até o final do século passado, quando eram retiradas de suas moradias ou das ruas e colocadas contra sua vontade em abrigos, orfanatos, hospitais ou asilos, pessoas nas mais diferentes situações: crianças, idosos, loucas, pessoas com deficiência, pessoas com doenças contagiosas ou que se suspeitava contágios. Elas permaneciam nessas instituições por longo período, muitas permanecendo a vida toda. Ainda que com “novas roupagens”, essas práticas ainda são reiteradas no Brasil.

As práticas de institucionalização dirigiram-se mais intensamente às pessoas com sofrimentos psiquicos e transtornos mentais. A violência dessas práticas foi uma das motivações para a mobilização social em torno da Reforma Psiquiátrica, no final dos anos 1970, cuja luta é presente e necessária ainda nos dias de hoje. Quando essa discussão se ampliou e ganhou a cena pública, foi possível dar visibilidade à práticas de controle entre muros, com uso de muita violência, torturas e práticas cruéis.

A denúncia dessas práticas exigiu reposicionamentos de toda a sociedade sobre a temática. No processo de redemocratização do país essa luta foi impulsionada pelo movimento de profissionais da saúde, de familiares pressionando o reposicionamento do Estado e da sociedade como um todo. Trata-se de uma verdadeira revolução na qual o “louco”, comumente entendido como perigoso para si e para a sociedade, passa a ser visto como uma pessoa que tem direito a ser tratado com dignidade.

Um legado importante da Reforma Psiquiátrica é nos demonstrar que é possível construir formas de convívio dignas e respeitosas e transformar as relações entre os sujeitos com transtornos mentais e sofrimentos psíquicos, a sociedade e as instituições, superando estigmas, segregação e desqualificação dos sujeitos ou, ainda, no sentido de estabelecer com a loucura uma relação de coexistência, de troca, de solidariedade, de positividade e, principalmente, de cuidados. (AMARANTE, 1997)

O combate às práticas violentas nas instituições evidencia os impactos da segregação, do confinamento e todas as formas de restrição de vínculos sociais na trajetória de vida dos cidadãos; exige dos profissionais e defensores de direitos construir argumentos que combatam as práticas de institucionalização e, ao mesmo tempo, a construção de práticas cotidianas que assegurem convivência respeitosa e digna para todas as pessoas fora de muros institucionais.

O debate ganha nova visibilidade em tempos atuais, quando se observa que ainda permanece o uso frequente de institucionalização e que ela, muitas vezes, resulta de arbitrariedades, erros processuais, preconceito, intolerância gerando muito sofrimento humano associado a violências de toda ordem.

Essa é uma questão que precisa ser enfrentada por trabalhadoras e trabalhadores de políticas públicas. Há que se respeitar a legislação e não violá-la, há que se desenvolver estratégias para acolher as reações às injustiças não como expressão de “loucura”, mas como forma de resistência e sanidade, há que se estabelecer redes de proteção e não de punição para combater desigualdades.

Crédito da foto: Roberto Parizotti (fotos públicas)

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