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O que os serviços do SUAS têm a ver com o fenômeno do suicídio

Embora seja uma temática difícil e implique lidar com intenso sofrimento, o suicídio é um fenômeno que precisa ser abordado e compreendido pelas equipes dos serviços do SUAS. É importante que as equipes estejam mais seguras e preparadas para que possam compor, junto com as políticas de saúde e educação, a rede de proteção e apoio tanto às pessoas com comportamento suicida, quanto as famílias enlutadas.

Suicídio na perspectiva da saúde

A partir de 1990, o suicídio foi considerado um problema a ser enfrentado pela saúde pública. Esse reconhecimento faz com que um fenômeno aparentemente individual e privado seja tratado como pauta de atenção em ações estratégicas no SUS.

A imensa maioria das pessoas que tenta ou comete suicídio é acometida por algum transtorno mental, sendo o mais comum a depressão. Do ponto de vista da política pública de saúde, o suicídio tem sido analisado como fenômeno coletivo com base nas análises da Vigilância em Saúde, trazendo informações para subsidiar políticas para diagnóstico, atenção, tratamento e prevenção.

De acordo o Boletim Epidemiológico de 2021, do Ministério da Saúde, a taxa de risco de suicídio entre homens é cerca de 4 vezes maior do que entre mulheres. E no período entre 2010 a 2019 houve um incremento de 81% de mortes por suicídio entre adolescentes no Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio configura a quarta maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos de idade.

Especialistas reconhecem uma conjunção de fatores relacionados ao comportamento suicida na juventude. Alguns desses fatores se destacam, como sentimentos de tristeza, desesperança, ansiedade, baixa autoestima, experiências adversas pregressas, como abusos físicos e sexuais pelos pais ou outras pessoas próximas, falta de amigos e suporte de parentes, exposição à violência e discriminação no ambiente escolar e o uso de substâncias psicoativas.

Idosos são outro grupo etário intensamente acometido pelo comportamento suicida. Em geral, os serviços de saúde centram sua atenção nos sofrimentos físicos e biológicos, em detrimento de sofrimentos psíquicos que podem levar à depressão e ideações suicidas.

Estudo inédito publicado pela Fiocruz mostra que um dos efeitos indiretos associados à primeira onda da pandemia de Covid-19 foram as mortes por suicídio entre idosos acima de 60 anos, com aumento significativo nas regiões Norte e Nordeste. “Nosso trabalho evidencia a importância de tratar o suicídio para além de um problema de saúde individual, pois trata-se de uma questão com profunda relação com as desigualdades econômicas e de acessos aos serviços sociais e de saúde pública”, explica Maximiliano Ponte, psiquiatra da FIOCRUZ do Ceará.

Dimensões intersetoriais para lidar com o suicídio

Entre os analistas da saúde já existe um consenso quanto à importância de intervenções precoces e feitas de forma adequada que envolvam a pessoa e seu conjunto de relações sociais e afetivas. O uso de atenções individuais, associadas a estratégias coletivas de cuidado, tem se mostrado mais eficiente na prevenção do suicídio e lesões auto provocadas.

Alguns autores apontam que adolescentes seguem marginalizados porque as instituições e serviços públicos, como o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e as escolas, pouco têm conseguido criar estratégias capazes de produzir sentido de pertencimento e de real participação na vida coletiva. Supõe-se que essa realidade, quando combinada à concepção de que a adolescência é uma fase “problemática” por si, tende a individualizar a questão, gerando sentimentos de culpa e isolamento. Esse modo de lidar com as “adolescências” fragiliza a criação e a manutenção de redes de apoio, a ampliação de círculos de amizade, a construção de vínculos significativos para além das relações familiares. A composição desses fatores pode contribuir para o aumento das dificuldades dos adolescentes que buscam novas possibilidades para seguir a vida, potencializando, assim, seu sofrimento psíquico. (Rossi et al, 2019)

Já a morte de idosos suicidas tem consequências duradouras na vida de suas famílias, marcadas por sentimento de incompreensão, culpa e isolamento social. A vergonha relacionada ao suicídio de um familiar é citada na literatura como o sentimento que predomina nas famílias, em virtude do estigma e do preconceito social associados ao ato. A vergonha geralmente ocorre em consequência de posturas externas ao núcleo familiar, como na reação de amigos e vizinhos que se afastam.” (Vieira et at, 2012)

Segundo a OMS, a prevenção do comportamento suicida deve contemplar: identificação de fatores de risco e de fatores protetivos; adequada avaliação e manejo em relação ao paciente com comportamento suicida; educação para população com o enfrentamento de preconceitos; restrição aos meios letais; ações educativas da mídia e apoio às famílias de pessoas em risco suicida.

Entre as ações consideradas pela OMS, é possível reconhecer a contribuição dos serviços do SUAS na composição de ações intersetoriais, ao lado dos serviços de saúde e educação. A contribuição do trabalho social das equipes do SUAS nessa composição pode ser tanto na identificação de fatores de risco e de fatores protetivos, quanto na educação para população no enfrentamento de preconceitos e fortalecimento de redes apoio às famílias de pessoas em risco suicida.

Suicídio na perspectiva do direito à assistência social

Sabemos que as equipes dos serviços de assistência social lidam com o comportamento suicida em seu cotidiano. Educadores do serviços de convivência ouvem relatos e lidam com os sofrimentos decorrentes de vivências de preconceito que podem levar ao isolamento social e crises de depressão de adolescentes e idosos.

Trabalhadores de equipes da proteção especial lidam com pessoas com vivência de violência doméstica e abuso sexual e sabem que essas vivências deixam marcas subjetivas profundas e, frequentemente, depressão, ansiedade e dificuldade de construção de novos vínculos afetivos e de confiança.

Equipes que acompanham famílias sabem que a experiência do luto de algum membro que tenha cometido suicídio é cercada de culpa, preconceitos e, por consequência, restrição das redes afetivas de apoio, seja na própria família ou na vizinhança.

Em síntese: as situações de desproteção social, como preconceito, isolamento e violência que são a matéria-prima do trabalho social no SUAS, compõem a complexa trama de causas possíveis do comportamento suicida. Ao mesmo tempo, as estratégias do trabalho social que visam promover convivências mais respeitosas e protegidas, criam redes de apoio e possibilitam vivências de escuta, valorização e não culpabilização pelos sofrimentos decorrentes de vivências de preconceito, isolamento, violência entre outros.

Lidar com o fenômeno do suicídio deve vislumbrar, além de ações pontuais nos momentos de crises, ações educacionais, de saúde e sociais que tenham como norteadores o enlace do sujeito ao outro e à vida, o amparo do ser humano em seus momentos de sofrimento e um cuidado ético e integral com a promoção de vidas dignas. (Santos e Kind, 2020)

Toda situação complexa exige respostas múltiplas e articuladas. Assim como outras demandas de proteção do SUAS, o suicídio é um fenômeno do qual precisamos falar, que precisamos compreender e conhecer para ser desmistificado. É preciso construir novos sentidos para essas vivências traumáticas, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo, para que a culpa, a vergonha e a tristeza não sejam o motor para novos ou repetidos ciclos de preconceito, abandono e isolamento social.

A segurança de convivência do SUAS nos dá a direção para esse trabalho. O trabalho social em equipes no SUAS cria oportunidade de estarmos presentes e fazermos a diferença na preservação da vida – não no seu sentido biológico -, mas no sentido de uma vida social ancorada em experiências de pertencimento e reconhecimento.

No SUAS podemos criar e sustentar espaços para compartilhar a dor para que seja possível suportá-la.

Stela Ferreira, diretoria técnica da Vira e Mexe

Stela Ferreira.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos no SUAS. Brasília: 2013.
SANTOS, Luciana Almeida e KIND, Luciana. Integralidade, intersetorialidade e cuidado em saúde: caminhos para enfrentar o suicídio. Interface 24. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/Interface.190116
ROSSI, Lívia Martins; MARCOLINO, Taís Quevedo et al. Crise e saúde mental na adolescência: a história sob a ótica de quem vive. Cad. Saúde Pública 35 (3). 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00125018
VIEIRA, Luiza Jane. FURTADO, Herla et al. Impacto do suicídio da pessoa idosa em suas famílias. Ciênc. saúde coletiva 17 (8). Ago 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000800010

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