Nesse momento de tributo aos 100 anos de nascimento do Educador Paulo Freire, nossa homenagem se dá reconhecendo as muitas marcas da educação freiriana em nós, associadas à nossa busca constante para avançarmos na direção de uma educação libertária, produtora de uma sociedade mais justa e humana.
Somos educadoras! Trabalhamos em processos de educação permanente de equipes que atuam em políticas públicas, seja na gestão, na atenção direta a cidadãs e cidadãos, seja no controle social sobre o Estado. Reconhecer-se educadora freiriana é uma elevada responsabilidade. É colocar-se num lugar em que é imprescindível manter coerência entre o discurso e a prática.
Costumamos dizer que “ensinamos fazendo”; não discursamos sobre o que deve ser feito. Experimentamos fazer com as equipes o que esperamos que seja feito com quem elas atendem. Nós as acolhemos e as escutamos; valorizamos o que dizem e o que sabem; ofertamos oportunidades para que esses saberes circulem e trocamos com elas, de forma horizontal, o que sabemos e aprendemos com outras equipes. Ensinamos e aprendemos simultaneamente. Saímos mudadas de cada encontro, porque produzimos encontros com profissionais.
Ao escutar, reconhecemos diferenças e as respeitamos, não concordamos com tudo que é dito, nos posicionamos. Somos categóricas e mostramos nossa divergência com qualquer forma de reprodução de subordinação e hierarquia social, seja na relação entre profissionais e cidadãs usuárias, seja na relação entre as equipes e entre serviços. Temos um lado e nos posicionamos, buscando coerência com a direção de alargar acesso à vida digna e cidadã. Não somos neutras!
Mas tememos fundamentalismos e incapacidade de diálogo. Não nos acomodamos nem nos “enclausuramos na nossa verdade”. Buscamos sustentar a escuta dos argumentos com os quais não concordamos. Buscamos uma postura que permita que as pessoas se sintam à vontade para, quando estamos em roda, colocar nela tudo o que pensam, as dúvidas que têm e as certezas que carregam.
Quase nunca é fácil, bem ao contrário. É bastante difícil controlar a emoção, o desejo de interromper falas racistas e preconceituosas, que legitimam a subordinação de mulheres pobres, denominando-as como “negligentes, acomodadas, preguiçosas que levantam tarde, sujas que não cuidam dos filhos”, dentre outras expressões da violência institucional. Nem sempre dá certo o autocontrole, mas aprendemos nessa vasta caminhada como educadoras freirianas que se não acolhemos a pessoa, não há como ela estabelecer trocas e aprender conosco.
Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isso não quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isto não seria escuta, mas auto-anulação. A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. Pelo contrário, é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar do ponto de vista das ideias. Paulo Freire in Pedagogia da Autonomia.
Sustentamos a escuta e convidamos que façam o mesmo para aprender com as mulheres “como é viver assim?”. Apostamos que o conhecimento da realidade, produz um desvelar sobre diferentes formas de resistência e esse novo conhecimento quebra preconceitos e reconstrói profissionais. Não é incomum que, ao término de encontros ou de experiências profissionais acompanhadas por nós, ouçamos falas do tipo: “estou me descontruindo”.
Não julgamos para que o julgamento moral não seja parâmetro no encontro entre profissionais e trabalhadoras-cidadãs-usuárias do SUAS. Valorizamos o cuidado, para que as profissionais vejam essas mulheres como cuidadoras sobrecarregadas e super exploradas.
E se o conhecimento da realidade é base para uma atuação consequente e comprometida, buscamos fazer o mesmo com as pessoas que encontramos. Temos curiosidade para saber como estão atuando, que desafios enfrentam, quais potências reconhecem no seu fazer cotidiano, em que momentos celebraram seu trabalho e sentem que fazem certo no momento certo. Não é idealização, é valorização da potência do trabalho profissional.
Ser educadora freiriana é reconhecer o que não sabemos. É ter humildade para reconhecer que não estamos no lugar das equipes, não temos os seus dilemas cotidianos, não lidamos com a desigualdade da mesma forma que as profissionais da linha de frente.
Isso exige não somente que tenhamos autocrítica, mas que nos abramos à crítica de quem se encontra conosco nos processos educativos. Assim, avaliamos cada passo dado, indagamos se o caminho proposto é bom e se ele atende ao desejo das pessoas presentes. Paramos para ouvir se o que dizemos e fazemos produz sentido e se ajuda a fazer novas perguntas para continuar o trabalho.
Assim entendemos e por isso nos colocamos o dever de não paralisar no que já aprendemos. De modo que é na leitura de teses e dissertações, no diálogo com profissionais de diferentes campos do conhecimento e na busca da arte como conexão para alcançar pessoas, que temos afirmado nossa condição de pesquisadoras para produzir novos conhecimentos que inspirem profissionais de políticas públicas a diversificar suas estratégias de atuação.
Nosso educador- inspirador afirma:
Por fim, queremos destacar que dentre as muitas marcas do Educador Paulo Freire em nós, está a alegria de educar, a alegria do encontro, a certeza de que seremos transformadas em cada momento que estivermos com profissionais que desejam refletir sobre o seu trabalho, valorizar suas conquistas e se desafiar para fazer avançar a responsabilidade pública pelo combate à desigualdade e todas as formas de opressão. Choramos muito, nos emocionamos sempre, nos afetamos nos encontros com as pessoas e seguimos o mestre, nos inspirando em sua pedagogia da alegria, da autonomia e da aposta na mudança:
É falso tomar como inconciliáveis seriedade docente e alegria, como se a alegria fosse inimiga da rigorosidade. Pelo contrário, quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha docência, tanto mais alegre me sinto e esperançoso também. A alegria não chega apenas no encontro do achado mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.
Ao enaltecer a presença do Educador Paulo Freire em nós, queremos aqui agradecer seu legado, sua capacidade transgressora, sua aposta na vida e na humanidade e o fazemos agradecendo a todas as pessoas que se encontram conosco, que nos afetam, nos ensinam, nos estimulam, se alegram e apostam, como nós, que somos capazes de produzir mudanças, porque somos pessoas dotadas de amor, alegria e inteligência.
VIVA PAULO FREIRE! GRATIDÃO PROFESSOR.
A construção desse texto está baseada em FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1996.