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Intersetorialidade e corresponsabilidade na gestão pública

Intersetorialidade e corresponsabilização

Todas as políticas sociais têm que prover atenções ao cidadão. Ocorre que face à desigualdade social instalada entre os brasileiros, esta provisão deve ocorrer a partir das condições concretas diferenciadas e desiguais dos cidadãos e não do que seria suposto como adequado a que ele devesse dispor. Cobrar das políticas sociais a atenção a todos os cidadãos significa que cada uma delas inclua as condições reais de vida dos brasileiros independente da precariedade em que estejam vivendo.

(SPOSATI, 2013:34

Para responder à complexidade da desigualdade social brasileira, sobretudo neste pós pandemia, “cada um fazer sua parte” não é suficiente ante à desigualdade estrutural que se agravou no tempo em que vivemos. A ação articulada entre diferentes políticas sociais é muito desafiadora.

Enfrentar esse desafio  é urgente e necessário porque se, de um lado, cada política social deve alcançar o máximo o seu potencial, de outro, do ponto de vista da complexidade das situações vividas pelas pessoas, não será suficiente. Todas as políticas sociais são, desse ponto de vista, incompletas e dependem umas das outras.

O reconhecimento da necessidade do fortalecimento de ações intersetoriais mais efetivas e capazes de assegurar proteção social aos adolescentes e jovens, geralmente, se apresenta como saída para enfrentar situações de violação de diversos direitos: direito à saúde, à assistência social, à habitação, ao lazer, à educação e outros. É comum também que tal reconhecimento parta da percepção de que os esforços empreendidos, muitas vezes, são desproporcionais aos resultados alcançados.

Na trajetória da equipe da Vira e Mexe a questão da intersetorialidade tem sido um desafio sempre presente, sobretudo porque nossas ações de apoio às equipes dos municípios têm como foco fortalecer processos de trabalho que sejam cada vez mais conectados à dinâmica dos lugares onde cidadãos vivem e circulam.

Na Assistência Social esse foco se justifica porque é nesses lugares que são construídos os vínculos sociais de reconhecimento e pertença e, também, são experimentadas as fragilidades desses vínculos, como em vivências de preconceito, isolamento ou apartação territorial.

Em nossa atuação nos processos de educação permanente voltados a profissionais que atuam no Sistema Único de Assistência Social em municípios, no Sistema de Garantias dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes e, ainda, no fortalecimento do controle social, temos aprendido que alguns pressupostos precisam ser ponto de partida e de sustentação de programas intersetoriais, sem os quais sua implementação é bastante arriscada e termina por repetir modelos já fartamente testados e, com baixo êxito.

Por isso, explicitamos aqui a concepção que nos orienta e que fundamenta as escolhas éticas, técnicas e políticas quando tratamos do tema da intersetorialidade das políticas públicas.

Políticas públicas setoriais têm especificidades

A natureza setorial e específica das políticas públicas, em si, não é um problema. Cada política social é  fruto de lutas e conquistas de setores da sociedade para garantir acesso a direitos e melhorar as dimensões da vida coletiva e assegurar o desenvolvimento humano a todas as pessoas.

Para isso, são desenvolvidos conhecimentos especializados, formas de organização e financiamento das políticas públicas para que esses direitos cheguem com mais qualidade a um maior número de pessoas.

A construção dessa especificidade advém do aprofundamento do conhecimento de aspectos da realidade com a qual as políticas setoriais lidam, favorece a comunicação de seus resultados para os cidadãos e propicia o controle social mais objetivo. Importante, portanto, considerar que setorização não é fragmentação.  

As políticas sociais setoriais são impactadas pelos territórios, visto que é nesses contextos que são executadas. Portanto, não é possível dissociar as pessoas das suas vivências cotidianas que são marcadas pelas formas de presença ou ausência do Estado. 

Isso exige uma leitura das desigualdades territoriais preexistentes e já mapeadas em âmbito setorial para que se tenha em conta que a produção de mudanças exige renovação de estratégias e ampliação de saberes sobre a realidade, que está sempre em movimento.

Embora estejamos num “apagão estatístico” no país, durante a pandemia foram sendo produzidos estudos sobre a desigualdade e sua intensificação decorrente da crise sanitária. Assim, reunir esse conjunto de informações, facilita compreender a gravidade da situação e a relevância de sua prioridade. 

O marco situacional precisa considerar as condições de vivência daquele determinado grupo populacional e o maior ou menor acesso ao conjunto de políticas públicas.

Há indicadores já pactuados do que se considera parâmetros de proteção ou desproteção social. Definir um consenso sobre esse indicadores e ter uma ação ampla de levantamento dessas informações, pode gerar dinamismo potente por captar vivências em curso. 

Os próprios serviços públicos produzem conhecimento sobre a realidade em que atuam, de modo que, no diálogo intersetorial é importante criar espaços de produção, mas também de circulação dos saberes existentes, para usufruir de caminhos já percorridos. 

Os instrumentos de leitura da realidade têm importância estratégica, como também a capacidade de ampliação da pauta das políticas públicas para que não sejam formuladas intervenções a partir de uma idealização, mas sim para responder às violações concretas. 

Mas para além de déficits há de se reconhecer as potências existentes e, nesse sentido, é fundamental que o diálogo seja feito partindo do reconhecimento dos conhecimentos existentes.

As políticas públicas setoriais são, por natureza, incompletas

A incompletude das políticas públicas setoriais torna-se evidente ao olharmos para as instituições e as pessoas que vivem e trabalham naquele determinado território e que demandam ações conectadas à dinâmica da vida e de seus modos de viver. Portanto, território, direitos de cidadania e intersetorialidade é uma composição necessária para qualquer e análise sobre acesso e luta por direitos. 

Ao apoiar gestores e equipes técnicas para lidar com os desafios da intersetorialidade, nos baseamos nos estudos de analistas de políticas públicas que têm consenso a respeito da incompletude das políticas setoriais. Esses autores apontam que as ações intersetoriais são quase inexistentes nos ciclos de planejamento e gestão das políticas públicas. Quando existem, frequentemente operam num modelo baseado na ação de várias instituições para alcançar o objetivo de uma delas, o que resulta em baixo grau de cooperação e corresponsabilidade.

Se partirmos da leitura de que as políticas sociais têm cobertura insuficiente, por consequência, é fundamental considerar que o enfrentamento de vivências de desigualdades e injustiças não é responsabilidade individual. Sobretudo, é necessário considerar que as desigualdades estruturantes da sociedade brasileira não podem ser naturalizadas pelas políticas públicas. 

É fundamental incorporar as dimensões de raça, gênero e classe para além do discurso. Estas dimensões precisam ser aplicadas na intervenção das políticas públicas. 

Ações intersetoriais — cidadãs e cidadãos no centro 

Os impactos da fragmentação entre as políticas públicas atingem diretamente os cidadãos, seja porque ficam com o encargo de transitar em meio às penosas burocracias de cada política pública, seja porque são, eles próprios, culpabilizados pela dificuldade de acessar os serviços públicos.

Por isso, as ações intersetoriais devem ter centralidade nos cidadãos que devem ter seus direitos respeitados e ampliados pela ação das políticas públicas. Em outras palavras, a centralidade não está em quem coordena a ação, mas a quem será por ela impactado. 

Para construir arranjos e ações intersetoriais é preciso partir do que é comum, do que é fundamental que seja feito para produzir resultados de incremento do direito de cidadania em todas as políticas públicas.

Qual o benefício que a ação articulada entre diferentes políticas públicas vai trazer para os cidadãos? Essa ação vai diminuir o tempo de espera para acessar os serviços? Essa ação vai produzir mais visibilidade para situações de violência e violação de direitos da população? Essa ação vai superar barreiras de acesso aos serviços públicos para determinados grupos?

A criação conjunta entre profissionais de diferentes instituições é mais favorecida quando as prioridades são definidas por todas as pessoas e quando diferentes perspectivas são respeitadas. Por isso, é fundamental criar os espaços de escuta dos diferentes modos de ver o problema e, a partir de pontos de vista distintos, firmar pactos e compromissos de mudanças da realidade. 

Nesse sentido, a ação intersetorial com base nessa premissa indica para todos os agentes públicos – e demais instituições envolvidas – que há violações de direitos que dizem respeito a diferentes políticas setoriais, logo, há corresponsabilidade nesse enfrentamento. 

Arranjos intersetoriais operam princípios de gestão democrática

Intersetorialidade tem a ver com corresponsabilidade e horizontalidade experimentadas em arranjos institucionais nos quais a coordenação é compartilhada. Há, portanto, uma radicalidade democrática nos arranjos intersetoriais, flagrantemente contrária às formas de relação atualmente praticadas entre níveis de governo e entre políticas no âmbito municipal. 

A democratização das políticas organizadas sob a forma de sistema único, como a saúde e a assistência social, ocorreu por meio da criação de dispositivos de gestão compartilhada entre os entes federativos, como as Comissões Intergestores Bipartite (CIB) e Tripartite (CIT), nas quais as gestões municipais dialogam e pactuam prioridades comuns com o governo estadual , alterando em certa medida a tendência de centralização de decisões nas esferas federal e estadual.

Nossa equipe tem experiência na construção e atuação nesses espaços, eivados de conflitos e de consensos históricos que fizeram avançar muitas pautas de ampliação de direitos de cidadania na política pública de assistência social e de direitos de crianças e adolescentes.

É desejável que, por exemplo, os colegiados gestores da saúde e da assistência social estejam inseridos na discussão desde o seu momento embrionário. Lembrando, inclusive, que SUS e SUAS operam por comissões intergestoras que aprovam e orientam a execução de ações quando elas são de dimensão intergovernamental e/ou regional. 

Para saber mais:

Canato,  Pamella  e Bichir, Renata. Intersetorialidade e redes sociais: a implementação de projetos para população em situação de rua em São Paulo. Rev. Adm. Pública 55 (4) • Jul-Aug 2021.

INOJOSA, Rose Marie. Sinergia em políticas e serviços públicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos Fundap, São Paulo, n. 22, p. 102-110, 2001.

KOGA, Dirce. Cidades entre territórios de vida e territórios vivido. Serviço Social & Sociedade São Paulo, n. 72, p. 23-52, nov. 2002.

SPOSATI, Aldaíza. Gestão pública intersetorial: sim ou não? Comentários de experiência. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 85, p. 133-141, mar. 2006.

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