Em setembro, o tema de prevenção de suicídio ganha destaque nas mídias devido à mobilização de diversas instituições públicas, privadas e da sociedade civil engajadas nas campanhas do setembro amarelo, iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria, criada em 2013, com o apoio do Conselho Federal de Medicina. Conheça mais sobre a campanha Setembro Amarelo aqui.
Embora tenha sido lançada pelo campo da saúde, a campanha Setembro Amarelo vem, a cada ano, mobilizando cada vez mais instituições de outros campos. A questão do suicídio e do luto de amigos e familiares de pessoas que se suicidaram também aparecem nos serviços do SUAS e, muitas vezes, os trabalhadores não sabem muito bem como lidar com ela.
Entrevistamos André e Lucas, dois educadores sociais que possuem longa trajetória de atuação em serviços de acolhimento de crianças e adolescentes, abordagem de crianças e adolescentes em situação de rua e também fazem supervisão de equipes do SUAS.
André é formado em Pedagogia pela Universidade de São Paulo e trabalha com crianças e adolescentes desde 2011. Trabalhou com crianças e adolescentes em situação de rua; atuou no Projeto Quixote, centro integrado que conta com serviço de fortalecimento de vínculos e Capes voltado para o atendimento à população infanto-juvenil em situação de rua no centro da cidade de São Paulo. Hoje trabalha na Associação Bem Comum, uma organização social que atua na região da Cidade Dutra e Grajaú, no extremo sul de São Paulo. Faz parte do Núcleo Perspectivas que faz supervisão para equipes de serviços de acolhimento.
Lucas fez graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo e, assim como o André, também foi educador social no Projeto Quixote. Atuou no plantão psicológico na Fundação Casa (antiga Febem) e, atualmente, é colaborador da Vira e Mexe nas ações de formação e supervisão de equipes.
Essa conversa foi feita com três focos: a experiência de André e Lucas com o fenômeno do suicídio na atenção aos adolescentes; como essa questão tem sido enunciada pelas equipes do SUAS e, por fim, como a convivência, como metodologia do trabalho social no SUAS, pode ser um dos caminhos da prevenção do suicídio.
Conta um pouco do seu trabalho e como o comportamento suicida aparece nos serviços que você atua?
André: Olhando para a minha trajetória profissional, a questão do comportamento suicida apareceu de muitas maneiras. Gente que trazia este tema numa mistura de brincadeira e seriedade. Adolescentes com discurso muito marcado por querer morrer por não ver sentido na vida, por estar buscando respostas para perguntas que até então nunca tinham aparecido. Mas para esse tipo de adolescente a impressão que eu tenho é que apareceu mais um ‘querer morrer’ como uma solução rápida para uma angústia momentânea. Não de fato um desejo real de morrer ou de perda de sentido da vida, mas uma angústia sobre algum tema que está batendo ali. Aí o adolescente fica assim ‘ah, queria morrer’ para não ter que lidar com aquilo.
Eu também convivi tanto no serviço de acolhimento, serviço em situação de rua e em outras instituições, com outro perfil de adolescente: aqueles que têm pouca ou nenhuma noção de perigo ou de medo. Gente que se coloca em risco o tempo todo e é mais do que aquele risco que, no geral, adolescente gosta de correr. Isso vem de uma ideia que flerta entre a invulnerabilidade, ou seja, ‘nada vai acontecer comigo’, com um pouquinho de esperança de ‘olha, se acontecer alguma coisa, pelo menos eu morri, e vivi a minha vida bem. O que vale é o agora, desde que eu viva agora da maneira mais intensa, mais maluca e mais prazerosa possível, morrer é uma coisa que vai acontecer comigo de qualquer forma, então preciso aproveitar o agora o máximo que eu posso’.
Um outro perfil, digamos assim, um outro fenômeno que vai se repetindo entre os adolescentes são aqueles que se automutilam, fazem tentativas de suicídio, conversam muito sobre o tema, estão sempre em profunda angústia, não aquela momentânea, mas uma angústia que não se resolve. Com estes, geralmente, as pessoas adultas ao redor estão bem atentas, estão em cima e tentando fazer algum tipo de intervenção, seja ela qual for.
Pode ser uma intervenção do campo social de fortalecer vínculos do adolescente; colocar aquela pessoa para fazer muitas atividades para ver se ela descobre alguma coisa; oferecer muitos estímulos e linguagens para ver se a pessoa também toma gosto por alguma coisa; colocar para fazer acompanhamento psicoterapêutico; fazer acompanhamento psiquiátrico. Enfim, ver qual dessas ações têm algum tipo de efeito.
É sempre muito triste ter que lidar com esse grupo que, às vezes, aparece ora de um jeito, ora de outro. Porque são pessoas que têm uns discursos muito fixos ‘sim eu vou morrer, vou morrer de qualquer jeito, a vida não faz sentido, já preparei toda a minha morte…’ gente que de fato tentou e se sente mal por não ter conseguido morrer, por estar vivo, ou gente que navega – tem dias que está bem, tem dias que está mal. É um público mais difícil de conversar.
E, por fim, outro grupo que tive acesso ao longo da vida, foram os adolescentes muito questionadores, com angústias muito reais, muito concretas, que também não encontravam algum tipo de acalanto ou de escuta e acolhimento daquelas angústias. E elas simplesmente desapareciam assim como por magia, a pessoa se resolve. Depois a gente descobria que não era bem que ela “se resolveu”, a pessoa só silenciou. Esse é o grupo que mais me preocupa porque são as pessoas que no momento de tristeza, de fato, podem levar a cabo o suicídio. Gente que está ali em um sofrimento eterno, mas que não abre nenhum espaço de diálogo para conversar sobre aquilo.
Então, por mais que você enxergue o sofrimento ou a pessoa dê pistas muito fortes sobre o que está rolando, todas as oportunidades e janelas que se abrem de tentativas, ela disfarça e fala que está bem e não entra em contato com aquilo de jeito nenhum. Com este perfil a gente tem poucas ações porque a pessoa sempre vai manifestar que está tudo bem.
É claro que isso é uma coisa que precisa ser reforçada de uma maneira muito enfática de que cada pessoa é uma pessoa e cada contexto é um contexto. Não tem como a gente dizer perfil A perfil B porque cada pessoa vive a sua história de uma maneira muito própria, mas há estas vertentes e esses caminhos que alguns adolescentes tendem a seguir e qualquer trabalhador da área social sabe que caminhos de intervenção não têm fórmula pronta. Cada pessoa é única, é preciso olhar o contexto, não existem fórmulas ou grupos fixos. Cada pessoa é uma só.
André
Lucas: Sou Lucas Souza de Carvalho, também conhecido como baiano nas minhas andanças, amizades, relações e encontros profissionais. Nos meus primeiros contatos de encontro com a juventude, além das minhas caminhadas, a minha vida de formação como educador social inicia quando eu entro na faculdade de Psicologia na USP e no segundo ano consigo entrar para um grupo que trabalhava na modalidade de plantão psicológico nas unidades de internação da Fundação Casa (antiga Febem) aqui em São Paulo. Por lá eu fiquei quase cinco anos. A gente sentava no pátio nas terças-feiras à noite, e nessa modalidade, estava ali aberto ao encontro e às conversas.
Depois disso, quando saí da faculdade, tive a oportunidade de poder participar de uma organização de São Paulo, o projeto Quixote, uma equipe chamada Refugiados Urbanos. Era um projeto que estava iniciando, em 2006, e a ideia era fazer abordagem e acompanhamento de crianças, adolescentes e jovens e famílias em situação de rua no centro da cidade de São Paulo.
A gente fazia acompanhamento longitudinal e o território era a criança e o jovem. Então se ele estava na Praça da Sé, a gente acompanha ele lá, se ele mudasse de bairro a gente também ia acompanhando. Se ele fosse para um abrigo a gente fazia também atendimento e conversava com a equipe técnica. Se ele acabasse sendo internado na Febem a gente também ia lá conversar com a equipe técnica e mantinha esse processo de acompanhamento longitudinal.
Nossos corpos eram as paredes institucionais, já que a gente estava sempre em movimento no território que seria aquela criança ou jovem e sua família, num processo de sempre estar construindo redes de proteção. Não era acompanhar para ser solitário nesta companhia, mas para juntos tecer uma rede de proteção no território que a gente estivesse ocupando. Tem algumas histórias que vão vir deste meu campo de atuação.
Vivi também processos de grupos com usuários do SUAS e de jovens em serviços de acolhimento em processos de desacolhimento por ficarem maiores de idade e processos com equipes de profissionais do SUAS.
E nessas navegações eu vivi também essas experiências, esses afetos e essas percepções que o André nos traz nesta amplitude de olhar que ele compartilha aqui com a gente, e sempre marcando e enfatizando que são leituras de coletivos e leituras individuais; e que o individual não sobrepõe ao coletivo. Eles se complementam, dialogam, e convivem. São questões individuais e questões públicas também.
E eu fico pensando que esses fenômenos que aparecem nestas leituras que o André traz tem muito a imagem de crianças, jovens, adultos, e pessoas enlutadas de outras mortes. Da morte de sua dignidade, de seu direito de ser, da morte de seus sonhos, e essas manifestações são um dos caminhos encontrados diante dessas outras mortes.
Lucas
Daí me fez lembrar de um encontro entre o Cesare La Rocca, fundador do projeto Axé, na Bahia, e Paulo Freire em 1996. Quando perguntado o que é a Pedagogia do Desejo do Projeto Axé, o Cesare fala: nossa filosofia inicial foi baseada na construção teórica de Paulo Freire, na medida em que íamos armando os educadores com essa pedagogia começamos a verificar que a criança que está na rua, a criança de periferia e da classe popular perdeu ou tem escondida a característica fundamental da infância que é sonhar, desejar e ter ambições.
E ele vai explicando o que é essa Pedagogia do Desejo que vale muito a pena a gente entrar em contato com ela. E Paulo Freire vai responder “até me emociona ouvir a explicação que o Cesare dá sobre a Pedagogia do Desejo. Eu me lembro que nos anos 1980 houve um movimento forte de boias frias em São Paulo, vi pela televisão uma entrevista em que uma jornalista se encontrava com um adolescente e perguntava “você sonha?” e o menino respondeu “não, só tenho pesadelo”.
Na mesma medida em que eu encontrava jovens e adultos nesta situação dramática com esta questão de praticar uma violência contra si mesmo, quando eu escutava estas pessoas, eu enxergava e compartilhava muita força. Quando estas pessoas sentiam que poderiam estar ali seguras comigo nestes encontros e ofereciam a mim a sua mão para acompanhar e adentrar aquela história, eu conseguia ver muita força também.
Como essa temática aparece nas equipes dos serviços?
André: De modo geral aparece sempre com muito desconforto. Porque é um assunto que ninguém vai ficar feliz e contente de ter que lidar com o fato de que uma pessoa tão jovem queira morrer. Ou que não veja sentido na vida a ponto de não querer vivê-la ou pior, que está em sofrimento tão grande que pode causar sofrimento a si mesma a ponto de alcançar a morte ou ver a morte como a única solução possível é muito desesperador.
Quando a gente conversa com as equipes nem sempre esse assunto aparece de maneira tão direta, quase sempre aparece meio enviesado e as pessoas querem mudar logo de assunto. Ou no sentido de negação, as pessoas usam muitos recursos desde falar baixinho em segredo ou contar como se fosse um detalhe e passar bem rápido como uma estratégia pra não ter que olhar para isso porque é bem difícil. E a gente se vê muito como alguém que não sabe como lidar com esse outro no sentido de que nós fazemos todo o trabalho que precisa ser feito de garantir direitos, de acolhimento, de oferecer redes de afeto, mas a gente não pode sujeitar o outro às nossas vontades sem considerar o que está acontecendo ali.
O que a gente faz como trabalhador social é abrir espaços para que esses assuntos apareçam e novas reflexões e pontos de vista possam surgir destas conversas, novas perspectivas de fortalecimento, enfim, trazer conhecimentos que às vezes não estão colocados ali ou oferecer novas interpretações para os mesmos fenômenos.
Diante disso, quando a gente conversa com as equipes sobre o suicídio, o primeiro ponto importante é conversar sobre o assunto com o respeito que ele merece. Sem banalizar, sem passar por ele como se fosse um detalhe, mas também tentar entender quais são nossos campos de ação.
Do ponto de vista técnico e teórico, a gente conversa um pouco sobre isso, analisa as condições sociais que a pessoa está, quais são os vínculos que ela tem, quais são as redes que podem ser fortalecidas, quais são os caminhos que levaram àquilo, sejam eles quais forem. Mas no dia a dia mesmo, na prática, só esse arcabouço técnico e teórico não dá conta de lidar com essa troca de afetos entre a pessoa que quer morrer e a gente.
Porque a morte por si só é um assunto que as pessoas em geral evitam. As equipes trazem isso de muitas maneiras, mas quase nunca diretamente. Quando chegam neste ponto de conversar o que pode ser feito, aparece muito uma tentativa de achar uma resposta única. Uma coisa muito eficaz que resolve a vida daquela pessoa, desde internação, medicação, intervenções de todas as áreas que se pode imaginar, até coisas do tipo ‘se ninguém ligar vai passar, a pessoa está tentando chamar a atenção’. Aparece muito isso. Penso que não devemos buscar fórmulas mágicas ou respostas do senso comum porque isso não vai ajudar aquela pessoa.
De modo geral, o que a gente vê é um desconforto, inexperiência e uma tentativa de evitar olhar para o assunto porque, de fato, é um assunto muito difícil. O que a gente tenta conversar sobre isso é olhar para o fato com seriedade. Jamais, em hipótese alguma, desconfiar da capacidade da outra pessoa de levar isto a cabo. E principalmente buscar ajuda de profissionais no sentido de fortalecer as redes que atendem aquela pessoa.
André
Desviar o olhar é bem problemático. Não é uma viagem de trem, onde tem um trilho e sai do ponto A e vai até o ponto B. É alguma coisa mais próxima de uma pipa no céu, tem uma linha que te guia, mas não dá pra dizer muito para onde o vento vai. Ou uma navegação, mesmo porque você depende de muitos fatores para que a intervenção aconteça. Então nas equipes aparece sempre de uma maneira indireta e as pessoas evitando olhar para aquilo para que desapareça da maneira mais rápida possível.
Lucas: Aparece nos trabalhos com as equipes, nos grupos e nos encontros esse fenômeno também aparece, como o André pontuou. Essa temática produz um efeito que é o medo que nós temos e carregamos de adentrar em assuntos muito dolorosos e muito doídos. Que é essa história do mito do curador ferido.
Nós que trabalhamos na assistência social muitas vezes carregamos nossas dores também, nossos dramas, nossas tragédias e essa temática da automutilação e do suicídio que o André vai trazendo assim ‘nossa, mas é uma pessoa que está aqui do meu lado e está manifestando isso!’ e eu estou no meu ofício aqui e preciso tirar ela desse lugar onde está para levar para outro lugar. E essa angústia de não conseguir gera essa dificuldade.
Mesmo que não tenha ninguém no Saica, no abrigo ou no serviço que esteja com comportamento suicida ou de autoagressão, é um assunto que tem que ser sempre conversado pelas equipes porque esta é uma das facetas de tantas outras dores que a gente entra em contato na nossa prática dentro do SUAS.
Lucas
Mas eu sinto que também é difícil escutar histórias difíceis. Poder falar isso num grupo, a princípio o grupo tem um certo temor, algumas vezes eu sinto isso. Então a ideia é sempre estar atento e oferecer um espaço seguro de conversa e entender que o espaço de reflexão da prática também é um espaço de convivência. Eu carrego a postura e os princípios da convivência em todos os meus encontros. Entender a construção desse lugar horizontal, democrático, libertário, seguro, com respeito à diversidade de pensar e ser no mundo; construir esse ambiente para que essas dores possam aparecer.
E faço coro ao André, mais uma vez, de que é importantíssimo estar sempre atento e atenta a não buscar respostas rápidas para situações complexas e rizomáticas.
Quando aparecia essa temática eu puxava uma conversa para ver como isso batia no peito de cada trabalhador/a dali. E se trazia alguma memória de coisas da vida pessoal porque o trabalho dos profissionais na assistência social é um trabalho que mexe com afetos, não é braçal. Principalmente no Saica (serviço de atendimento institucional para crianças e adolescentes). Então, é para ali onde eu mirava quando surgia essas situações. Então, depois de olhar no olho do outro, conversávamos sobre quais são as experimentações que a gente iria fazer e tirávamos na equipe as propostas de experimentações para uma ação individualizada com aquela criança ou jovem. Mas tinha também uma conversa coletiva, uma ação, uma ocupação daquele território sobre este tema. Não no caráter de expor aquela pessoa, mas como um fenômeno que está no Saica e tem que ser conversado.
E para não deixar no suspense do que aconteceu depois desta série de intervenções: reduziu a zero a automutilação dos corpos desses jovens neste serviço por mais de um ano e meio, mesmo em situação pandêmica interrompeu-se esse movimento, mas não silenciaram-se as vozes porque as conversas continuaram acontecendo. Essa era a questão. Eles não viam a manifestação desse sofrimento com um olhar de moral.
Quem cometia esse ato e essa manifestação não era acuado pela equipe nem pelos jovens. Era acolhido, era respeitado e compreendido que era um ato de desespero e pedido de cuidado, não um ato para destruir as normas e regras da casa. Foi muito forte, muito bonito e muito potente.
E vivi também outras experiências com jovens, eu junto com outro educador social, Ricardo Carvalho. A gente fez grupos de convivência e fortalecimento de vínculos com jovens de abrigo em Campinas e na cidade de São Paulo que estavam saindo do abrigo por maioridade. Nestes grupos de convivência apareciam também muitas conversas sobre depressão, trazidas pelos jovens mesmo. A gente conseguia se sentir seguro naquele espaço para falar sobre suas dores, vontade que batia na cabeça de suicidar-se, o desespero de interromper o que estava vivendo, esta angustia de ser jovem neste contexto, tendo que sair do abrigo, sendo educado para acreditar que se vive sozinho e sozinha no mundo, não tendo recursos financeiros e emocionais para isso.
Então nesses grupos a gente também buscava trabalhar e escutar junto com os jovens outras possibilidades, outros caminhos, outras estratégias de conseguir comunicar estas angústias e este sofrimento.
É o papel do educador social enquanto tradutor: ajudar a esboçar outros mapas de ações e de comunicação do vivido. A gente precisa entregar esse direito a quem precisar.
Então, pude ver, viver, experimentar todos esses movimentos e encontros em que a força dos grupos de convivência pautados nos princípios do SUAS, da escuta, do acolhimento, do respeito à dignidade, nestes espaços produz uma retomada de força destes corpos, dessas almas, dessas potencias. Como o André já marcou, não é o único espaço, mas é muito potente e é um espaço de direito.
Como a convivência pode ser um caminho de prevenção ou de cuidado aos enlutados?
André: No meu ponto de vista, acho que a convivência como estratégia do trabalho social é a que mais pode dar resultado, tanto para acolher a pessoa, que é o sujeito protagonista do fenômeno, quanto para a família, os amigos e a comunidade ao redor, tanto para as que estão lidando com uma pessoa que quer cometer o suicídio, quanto para os enlutados que viveram essa perda
Primeiro que as pessoas precisam buscar psicoterapia, se elas tem uma rede fortalecida, precisam também buscar todas as intervenções clínicas que podem ser feitas, psicossociais todas que estiverem ao alcance delas. Isso é inquestionável porque uma ação não deslegitima outra.
Acho que é o conjunto destas ações que têm algum efeito na pessoa, na família e amigos que viveram isso. Por que eu faço essa aposta tão grande na convivência? Porque é essa ideia de que a gente precisa do outro para fazer sentido, para constituir o que nós somos e para viver em sociedade. O fortalecimento desses vínculos podem ajudar a pessoa. Não necessariamente encontrar sentido na vida porque eu acho isso de uma delicadeza e de uma profundidade muito grande para ser resumido assim “ah, a pessoa convive e encontra sentido na vida…” eu acho que isso é um assunto a ser debatido com mais calma e mais profundidade. Mas no sentido de que todas as vezes em que você encontra outra pessoa e interage com ela de alguma maneira, você precisa se reafirmar enquanto sujeito e se questionar enquanto sujeito também. Então abrem-se sempre estes campos de possibilidade para a pessoa poder rever e às vezes mudar de opinião, não no sentido de que ela achava uma coisa ruim e depois do encontro ela passa a achar a coisa boa. Mas para sempre abrir esses campos da dúvida, porque essas dúvidas, desde que vividas de maneira adequada, nos move a querer sempre descobrir coisas novas.
Então, da minha experiência, eu vi muitos adolescentes ensimesmados numa espécie de solidão num nível muito profundo. E essas pessoas foram construindo laços significativos e essa solidão aparentemente foi amenizando. E esse tipo de solidão se desloca para aquele adolescente vestido todo de preto com capuz na cabeça que não fala com ninguém. E muitas vezes não é bem por aí. Já vi muito adolescente se sentir muito solitário ou solitária, mas ele está sempre cercado de muitas pessoas só que são pessoas com as quais eles têm relações muito circunstanciais, são os amigos do futebol, os amigos do trabalho de escola, é muito circunstancial e essas relações são muito rasas. Não acontece uma identificação ou um aprofundamento deste vínculo. Ou um afeto que mobiliza aquela pessoa a querer construir um vínculo mais significativo, seja com amigos ou com a própria família mesmo ou até com as instituições.
Às vezes a gente vai lá em um serviço de saúde mental ou vai à escola porque tem que ir, mas não necessariamente construiu um vínculo significativo a partir daquela experiência. Mas a convivência e a pessoa estar exposta a estes lugares de convivência, e esse convite está sempre sendo feito de maneira muito respeitosa e muito aberto ao diálogo porque este convite ao convívio não pode ser uma imposição, mas um convite mesmo. Acho isso bem potente.
A pessoa tem a chance de revisitar aquelas ideias que estão tão fixas, imutáveis e cristalizadas e colocar nelas algum campo de dúvida e às vezes nestas dúvidas se abrem possibilidades de novos descobrimentos, novos prazeres ou novos sentidos para as coisas que estão sendo feitas.
Isso do ponto de vista das pessoas que são protagonistas do fenômeno do suicídio e que estão vivendo esse fato enquanto primeira pessoa. Agora para as famílias que viveram esta perda, o que aparece muito é um sentimento de culpa, quase sempre muita culpa e muita raiva também no sentido de que aquele que se matou ‘poderia ter me procurado para pedir ajuda’, ou para conversar mais ou eu fiz menos do que eu poderia fazer. Eu deveria ter dado mais atenção, ter ficado mais atento…” Aí entra numa lista de ‘eu deveria’ e ao mesmo tempo gera um sentimento de raiva, “como a pessoa pôde fazer isso comigo, ela não pensou em ninguém, foi egoísta…” e vai por aí.
Mas quase sempre os sentimentos nas família e amigos são de frustração, medo e angústia, nunca é um sentimento só de tristeza. É perpassado por muitas coisas. Mas a convivência pode ajudar a buscar novos vínculos, novas formas de interpretação e poder falar sobre o assunto, expressar às vezes por outros caminhos de linguagens que não necessariamente a fala. A pessoa vai fazer parte de grupo de dança, arte corporal, fotografia, alguma coisa artística, ou vai trabalhar em redes de apoio.
Do que eu vi gera uma vergonha nas famílias e uma tentativa de não falar sobre o assunto porque pode mostrar que a família falhou em algum ponto, mas a convivência no SUAS e na vida pode trazer esse lugar de criação de novos vínculos. Como a convivência não é algo imposto que você segue 10 passos, é uma coisa que vai acontecendo, então a pessoa não se sente invadida por aquilo, ela está sempre neste convite de entrar em contato com aquela dor e poder trazer novos significados, novos pontos de vista e seguir em frente da maneira que dá.
Lucas: Poder viver encontros em espaço de convivência que produzam construção e fortalecimento de vínculos duradouros é um direito nosso e é um direito que se faz mais urgente. Temos acompanhado o infeliz e trágico aumento de suicídios, automutilação e todo tipo de violências praticadas contra si mesmo.
É muito importante que os profissionais que atuam na Assistência Social estejam buscando se preparar para estes encontros, para mobilização, para esta escuta, tanto a escuta da singularidade, mas também em processos coletivos e grupais. Buscar entender o que tem produzido esse tamanho desamparo. E esses espaços de convivência são espaços privilegiados para que haja o fortalecimento desses vínculos.
A gente é estrategicamente levado a acreditar na mentira de que tem que aprender a se virar sozinho. E isso é vendido e colocado na nossa cabeça desde que a gente é criança. Então as pessoas vão se afastando desses enredamentos de proteção, de convívio, de estar ao lado, de poder contar com o outro. Um dos significados da palavra família é aquele com quem eu posso contar.
Então esses espaços de convivência produzem estas relações em que um pode contar com o outro, pode contar com outro usuário do serviço, pode contar com o profissional do serviço, pode contar com o próprio serviço, estabelecendo estas redes de proteção múltiplas e isto se ampliando para as ocupações no território, para outros espaços de convivência, para a criação de outros espaços territoriais de convivências como ocupar uma praça e fazer estes atos. Levar até o território esse debate, essa conversa sobre o que está acontecendo com nossas crianças, jovens, mulheres e homens, de comportamento suicida e de automutilação. [É necessário] trazer isso para fazer uma conversa porque a saúde mental não tem a ver com a pessoa, é da relação dessa pessoa com o mundo.
Olha essa história interessante que aconteceu dentro de um serviço de acolhimento: em setembro de 2020 no contexto da pandemia e esse assunto do setembro amarelo nas redes e sendo noticiado, mas produzindo pouco espaço de conversa até porque os serviços estavam fechados.
Mas esse Saica teve coragem de acreditar no que deveria ser feito porque estava vendo aqueles movimentos acontecendo que os jovens estavam apresentando automutilação em situações graves, aquele sangue esparramado, aquela dor escancarada e as crianças pequenas assistindo. Foi gerando um movimento maior que nos meses anteriores. Essa equipe teve a prontidão “vamos conversar sobre isso”. E fomos conversando nos espaços de reflexão da prática, a equipe foi mais compartilhando do que construindo um método. Essa é uma equipe muito competente e fizeram várias ações em todos os plantões porque estavam mirando fechar ali um sarau com música, poesia e esquetes.
Fizeram uma campanha e me mandaram as fotos para eu ver. As fotos eram de jovens e adolescentes, onde havia marcas das mutilações, eles escreveram frases com canetão. Eles tiraram fotos em preto e branco mostrando os braços, o tórax, mostrando onde estavam fazendo essas marcações nos seus corpos. E as frases eram “já não sinto amor nem dor”; “quando houver sol”; “sua vida importa”; “hold on”; “tente outra vez”; “outro corpo marcado, mas é claro que o sol vai voltar amanhã”; “depressão tem cura”; outro corpo marcado “respire fundo”; outro sendo marcado com “seja forte”; outro corpo sendo marcado com “saúde mental importa”; “depressão existe”; “não desista”; outro corpo sendo marcado com “não é drama”.