Estamos apoiando as equipes dos municípios para a regulamentação e operacionalização dos benefícios eventuais do SUAS. Ao lado de nossa colaboradora Ana Ligia Gomes, especialista neste assunto e com ampla experiência na gestão de benefícios, realizamos a supervisão técnica nos municípios como Bady Bassitt, Andradina e, mais recentemente Salto, todos no interior paulista.
Ao escutar as equipes e conselheiros tem sido frequente a seguinte pergunta: como criar critérios para a concessão do benefício eventual para que ele possa ser acessado, de fato, como direito da Assistência Social?
Para construir as respostas possíveis junto com as equipes entendemos que é necessário ter como ponto de partida duas ideias fundamentais:
- direitos só são assegurados quanto há critérios claros e compreensíveis ao cidadão e, por isso, podem ser reclamados quando são negados; sem essa condição, a entrega de qualquer bem ou recurso pode ser entendida como favor ou privilégio.
- o acesso a um direito sempre supõe um sujeito coletivo, ou seja, embora ele possa ser requisitado por um indivíduo, ele sempre vai corresponder a um conjunto de cidadãos que vivenciam uma dimensão da desigualdade social visto que já está reconhecida em lei.
Portanto, a pergunta que precisa ser feita é: quais critérios seriam mais coerentes para que os cidadãos tenham acesso ao benefício eventual como direito à Assistência Social?
Quando colocamos em prática os princípios da educação permanente do SUAS nos processos de supervisão técnica e apoio às equipes, nosso desafio tem sido criar estratégias para que as respostas a perguntas como esse sejam construídas a partir da análise das práticas pelas próprias equipes, sejam elas da gestão, dos serviços ou conselheiros.
Assim, é preciso reconhecer que a construção desses critérios precisa ser feita com base na realidade de cada município, sua história, sua dinâmica econômica, cultural, seus movimentos migratórios, seus movimentos sociais etc. Mesmo considerando essa imensa diversidade que temos Brasil afora, é possível ter referências comuns para refletir e orientar tomada de decisão quanto aos critérios para acesso aos benefícios eventuais.
Por isso, compartilhamos o exercício que temos feito com as equipes e esperamos que ele possa produzir boas reflexões e novos entendimentos e decisões sobre esse tema.
Como diferenciar as situações temporárias das duradouras na concessão dos benefícios eventuais?
A compreensão da natureza temporária e provisória do benefício eventual é fundamental para que não se crie a falsa expectativa de resolução de problemas e necessidades contínuas e duradouras na vida das pessoas. Para necessidades sociais duradouras somente o acesso ao direito produz solução mais digna e eficaz.
Para gerar reflexões, a partir da realidade vivida pelas equipes, propomos o seguinte roteiro:
- Listar tudo o que os cidadãos “vem buscar” como benefício na Assistência Social, tal como eles próprios nominam: vim buscar a cesta; preciso do vale transporte, preciso de dinheiro pagar a conta de luz etc.
- Para cada item, descrever o que os cidadãos respondem quando perguntados “o que está acontecendo na sua vida para você estar precisando disso?” As respostas, em geral, dão acesso a vivências cotidianas de sofrimento que vão muito além da “cesta”, do “vale” e da “conta de luz”.
- Também para cada item correspondente ao que o cidadão veio buscar a equipe deve refletir e responder “quanto tempo essa necessidade e esse motivo duram na vida dessas pessoas?” As respostas mais adequadas devem ir na direção de afirmar se é possível relacionar a necessidade a um tempo determinado ou indeterminado, ou até mesmo contínuo quando se trata, por exemplo, da necessidade de alimentação. Aqui é preciso ter um rigor: a pergunta tem como centro a vivência da situação pelo cidadão e não a frequência com que o benefício é concedido (centralizado no procedimento) ou na frequência que o cidadão solicita o benefício (quantas vezes ao mês a pessoa solicita o benefício).
Para as situações de longa duração, a resposta adequada e digna não são os benefícios eventuais. Em lugar de fazer um “arremedo” de outras políticas sociais, devemos nos unir e somar esforços às pautas e lutas pelo direito à segurança alimentar, à moradia entre outras.
Por outro lado, para as situações de duração curta e/ou determinada, devemos continuar conversando para captar os conteúdos que indicam ou explicitam as responsabilidades próprias da política de Assistência Social, ou seja, as vivências que fragilizam ou violam o direito à convivência e à autonomia. Por exemplo, as vivências de fragilização de vínculos familiares por causa da violência doméstica, vivências do luto da família ou perda de pessoas da rede afetiva que são fonte de apoio ou, ainda, sobrecarga de uma pessoa da família que cuida de alguém com dependência (ou sequela de covid) em consequência da falta de serviços públicos de cuidado, acolhimento ou reintegração familiar.
Também devem ser foco de atenção das equipes as vivências de fragilização de vínculos nos lugares onde se vive em consequência de crimes de ódio, como racismo, feminicídio, xenofobia, homo e transfobia, migrações recentes e pessoas sem redes de apoio pessoal e institucional.
Por fim, em nossa experiência, ao responder essas perguntas com senso de realidade e sem julgamento moral, as equipes vão tornando visíveis os fenômenos e vivências que estão para além da demanda imediata, aquela dita “no balcão”. Assim, começa a emergir aquilo que é essencial compreender: junto com a demanda por benefício eventual, os cidadãos trazem seu direito violado à segurança alimentar, ao trabalho digno, à moradia; e as demandas que devem ser acolhidas nos serviços da Assistência Social, como o direito à convivência e à autonomia.
Para saber mais, conheça a experiência do benefício eventual Avise, de Belo Horizonte